a voz ordena a escrita, grita. a voz ordena que seja dito, insiste. a voz, a voz, a voz. a escrita, a escrita, a escrita. tens de escrever. tens. tem de ser. não pode ser. dizer o que não deve ser dito. dizer o que se pensa. dizer as lavas do coração em chamas. escrever e dizer. dizer e falar. falar e ouvir. ouvir e ferir. ferir e sofrer. não escrever e não dizer e não falar e não ouvir e não ferir e sofrer. espremer a normalidade e vestir a certeza de que nem tudo pode ser dito, (...)
Ela vai sozinha, de preto e perseguida pelo silêncio ensurdecedor da morte. Dantes ele ia ao seu lado. Mãos dadas. Tantos anos e ainda permaneciam de mãos dadas. Faziam caminhadas e sentavam-se num banco de jardim simplesmente a ver a vida que construíram a passar diante dos olhos. Esta era a vida. Eram dias de partilha e mãos unidas. Um só olhar. Os filhos vieram, os filhos foram cada um para o seu lado e eles dois permaneceram. Unidos. Enfrentavam cada dia como parte deste percurso (...)
o céu está denso, carregado de nuvens e a espirrar gelo. tudo está cinzento. parece que o dia se transformou em noite e que a noite é uma continuidade do dia no mesmo tom. ajeitam-se cachecóis para afastar o frio, seguram-se guarda-chuvas para protegerem-se da chuva e abaixam-se os olhos para não pensar na solidão. é preciso correr para esquecer o vento, o céu, o frio, a chuva, os casacos, os guarda-chuvas, as ruas, as nuvens. é preciso correr, não olhar para os lados, abrir (...)
afasta. corre. vê. não vê. não entende. sente e não quer sentir. não sente e não compreende. escurece. esfria. horas que voam. horas que não voltam. será lua, será sol, será horizonte? olhos que doem. olhos que salgam. o mundo está demasiado longe do coração. o sentimento inexiste. a ilha é a ilha. a ilha é o lugar. a ilha é o ponto exacto no mapa. e o mapa, este, não contém coordenadas. uma ausência de direcção.
se fosses barco saberias o que isso significa. (...)
O dia foi lento. A lembrança dela tem me acompanhado. Tem estado comigo. Tenho pensado bastante nela. Cada vez mais. Soa-me a sua gargalhada. Parece que ainda ouço as suas palavras. É estranho, é muito estranho. Não entendo muito isto da ausência. Farto-me de escrever sobre isto. Sobre este efeito da passagem do tempo. Parece que foi ontem. Parece que foi há um século. Parece que nada aconteceu. O peso do facto permanece.
Parece que vejo-lhe os olhos. Atentos e inteligentes. (...)
Um abraço. Um abraço para transmitir solidariedade. Um abraço para transmitir carinho. Um abraço para transmitir amizade. A dimensão de um abraço não se esgota na extensão de um braço. A capacidade de abraçar não é unicamente física. Num abraço colocamos um pouco de alma. Quando abraçamos estamos a indicar que os nossos ombros estão dispostos a recolher as lágrimas e a proteger a pessoa dos olhares indiscretos. Um abraço contém a circularidade dos afectos. Abrigamos (...)
Desencontro-me do sono. Não foi marcada a hora e a data certa, mas a sua chegada é um pressuposto. Os pensamentos agarram-se às pestanas. Seguram-lhes os movimentos e imobilizam o seu percurso natural. Dançam diante dos olhos. A mente produz e transforma em cenas e sequências o desenrolar dos acontecimentos. É desnecessário um desenho certo daquilo que é visível. O engano, quando existe, é por distracção. O desfecho é conhecido e pouco argumentável. Não é original. Antes, (...)
O som agudo do alarme dos bombeiros voluntários atravessa, pela segunda vez, a madrugada. Ao longe já se fazem ouvir as sirenes, anunciando a desenfreada passagem. Sinto um estremecimento. Algo de errado aconteceu. Algo pode ter causado feridos. Algo pode ter gerado algum desastre. Sinto uma inquietação diante do desconhecido.
Neste momento, o silêncio é quase absoluto: somente um esporádico carro e os dedos a teclar. A minha cabeça lateja. E ao fundo, depois do latejar, parece que ouço o Renato Russo cantar: "Meu coração não quer deixar meu corpo descansar". Caio em mim. Sinto a música, sem ouví-la.