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Chá de Menta

I am half agony, half hope | Jane Austen

Chá de Menta

I am half agony, half hope | Jane Austen

(365 palavras [3] cantilena)

06.02.13, a dona do chá

cantilena |ê| *

s. f.
1. Canto arrastado e monótono.
2. Narração ou razão fastidiosa.
3. [Antigo]  Canto suave.
4. Canto das aves.
5. [Informal]  Palavreado astucioso para iludir, enganar.

 

A verdade é sempre incómoda. Nunca pertence ao próximo. Pensamos que a possuímos, que somos seus donos por excelência. Pressupomos que viveremos eternamente e que usufruiremos de uma redentiva misericórdia que nos impedirá de sofrer. Quem sabe nos livrar da morte. Quem sabe excederemos o limite razoável da nossa capacidade de compreender o amor e a vida. Inspiramos e expiramos em movimento contínuo. O peito ondula ao ritmo do sono irregular. As palavras desprendem-se como um vestígio entre dentes. Lábios que sopram sonhos como se fossem realidades momentâneas.  Olhar fixo, longínquo e lento.

-Vês os desenhos na janela?  

- Quais desenhos? 

- Não consegues ver…? 

- Não são desenhos, são os galhos despidos das árvores no parque lá fora. Eles estão a riscar o céu… Parecem-te desenhos? Sabes, se calhar, até tens razão… são desenhos. 

Observo-lhe o sono: pequenos rugidos disformes. A sua sonolência é uma expressão da sua própria amargura: uma verdade desfocada. Exasperada.  Dissolvida em pequenas doses de frases soltas. Fogem-lhe quase que inconscientemente. Pairam no ar numa cantilena rouca, grave e quase inaudível.

Inspira e expira. Vozes, muitas vozes. Mas há um silêncio que se assume acima do ruído e que se entrelaça com o vento. Os galhos secos balançam e apontam para as fronteiras do azul-celeste. Dedos estendidos ao horizonte. Mãos que se erguem e movem-se com leveza. Se fecharmos os olhos vemos esta pintura exposta na janela e esqueceremos os ruídos e as verdades incómodas.

Não há recordação que não possa ser relegada à moldura do esquecimento. Então, a verdade não é tão importante assim. A amargura é o vilão dos afectos. Envenena os seus olhos e prende-lhe a respiração. Tem de inspirar e expirar. Lentamente. E esquecer, esquecer. Tomar o fólego e estender por completo o que de melhor ainda pode abraçar.

Ainda há tempo.

Ele não sabe, mas ainda há tempo.

 

--

 

*Dicionário Priberam da Língua Portuguesa