( o imperativo da realidade )
O dia ensolarado não fazia sentido. Ele se metamorfoseou em céu em fúria: nuvens densas, cheiro intenso a ausência, escuridade, trovões e chuva.
Havia um silêncio. Cabeças curvadas. Olhares no vazio. Olhares que percorrem sem ver. Olhares que desencontram-se. Ritual, sequência e flores. Palavras ditas. Palavras que alcançam o ouvido de quem quisesse ouvir. Palavras para dizer que temos porquês para os quais não existem respostas. Palavras de consolo. Palavras de alerta. Quem presidia a cerimónia disse: “curvamo-nos diante do imperativo da realidade”. É bem verdade. O imperativo da dor lancinante. Palavras que chegam aos ouvidos e dizem que uma tragédia como esta faz-nos pensar nas nossas próprias escolhas, que a morte não escolhe idade e que temos de pensar no que queremos ser enquanto pessoas. Sim, o imperativo da realidade faz-nos curvar e descer abaixo de nós mesmos. O eu, o ego em êxtase, murcha como as pétalas das flores dedicadas ao menino e dá lugar a solidariedade. O eu é substituído por outros pronomes pessoais.
A marcha seguiu gradual, compassada e repleta de pessoas. Todos pelo meio da rua. Carros parados. Transportes públicos parados. Muitos óculos escuros a esconder a lágrima discreta e a reserva dos sentimentos. Um silêncio profundo. Parecia que o mundo tinha parado a sua rotação. O silêncio de homenagem. O silêncio da reflexão.
Surge-me o pensamento de que uma das características de se morar num meio pequeno é o de, em situações como esta, a comunidade exercer um grande cordão de humanidade. O trânsito pára para deixar passar aquele que partiu, aqueles que ficam com a dor e aqueles que homenageiam.
O céu, as nuvens, as árvores, uma brisa fria – estranhamente fria – e o passo lento. Aguardava-se. Mantinha-se a distância devida para a preservar a despedida. No momento derradeiro há o último olhar. Joga-se terra. Jogam-se flores. Muitas flores brancas. Muitos jovens alterados. Muitos idosos com a resignação da experiência. Joga-se terra. Pás riscam em movimento. E mais flores. Venta mais. Parece que sente-se mais frio.
O dia ensolarado não fazia sentido. Não fez.
O dia curvou-se perante o imperativo da realidade.