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Chá de Menta

I am half agony, half hope | Jane Austen

Chá de Menta

I am half agony, half hope | Jane Austen

( Sobre o que é realmente importante #2 – ou “este país não é para velhos" )

21.08.10, a dona do chá

A A.L. caminhava pelas ruas do centro do Porto e deu com um senhor idoso encostado ao muro da estação da Trindade. Chamou-lhe a atenção porque ele aparentava não se sentir bem. Então, ela se aproximou e começou a conversar com ele.

 

Era um senhor de 72 anos, que vinha do tratamento de quimioterapia do Hospital São João. Ele estava exausto do tratamento, sem comer, sem dinheiro para transporte, viúvo e sem filhos e, por isso, estava sozinho. Completamente sozinho. Caminhava no seu passo lento. Como ele não tinha dinheiro, fazia o percurso a pé para voltar a casa. Outro detalhe importante é que a casa dele é em Gaia. Outro detalhe, ainda mais importante, como o Hospital São João é no Porto e ele mora em Gaia, o hospital não lhe assegurava o transporte. Relembro: um senhor de 72 anos, sozinho, sem dinheiro no bolso, a morar noutra cidade e com cancro. Tem de ir a pé. Se quer se tratar tem de ir a pé.

 

A A.L. disse-me “Não pude fazer muito. Seis euros e compaixão”. Ela deu-lhe o cartão com o seu endereço e ofereceu-lhe ajuda. “O homem tinha tanta dignidade”. Diz-me que estes episódios acontecem-lhe constantemente. Pergunta-me: “Porque eu? Sou diferente? Não. Apenas páro. Só parei.”. És diferente e fazes a diferença, afirmo-lhe.

 

“Eu sou infeliz pela humanidade em si. Tenho pena das pessoas, mas não é pena das que estão na miséria. Tenho pena das pessoas que têm o suficiente para não se interessarem pelas demais. Só nos temos uns aos outros e estamos todos a falhar”.

 

É bem verdade o que ela diz. Entendo-lhe a revolta.

 

Poderão, os que lêem esta breve nota, encarar esta revolta como ingenuidade. Dizer que o mundo é assim mesmo: cruel, desumano, sujo e injusto. Sabem, antes ingénua do que anestesiada. Antes ingénua do indiferente. Antes abraçar a causa dos que sofrem do que perder-me na frieza. Talvez não se possa mudar o mundo, mas acredito que se possa alterar a rotação do universo de uma pessoa. Eu acredito no valor de um gesto de amor.

( Sobre o que é realmente importante #1 )

21.08.10, a dona do chá

O meu conceito de amizade é um pouco esquisito. À minha semelhança, talvez.

 

Eu não consigo chamar de “amigo” uma pessoa que conheço há coisa de dias. Há o sentimento de empatia e até podemos sentir amizade por alguém, mas isso não o torna necessariamente um amigo. Aprendi, desde cedo, a escolhê-los a dedo. Tenho alguns. Bons amigos. São pessoas que têm atravessado comigo, perto e longe, várias etapas. Alegrias e tristezas. E, depois tem isto: amigo que é amigo não se distancia com a distância. Mesmo longe, um faz morada no pensamento do outro. Acrescento ainda que há a troca e o aprendizado entre amigos.

 

Por que estou a deslindar o meu conceito de amizade? É um mote para falar de uma grande amiga em específico, a A.L.. Há mais de dez anos que nos conhecemos na universidade. Éramos colegas de turma, mas os nossos caminhos aprofundaram-se meio no imprevisto. É impossível conhecê-la e não apaixonar-se por ela. Tudo o que ela faz e pensa é sempre marcado pela intensidade de sentimentos. É uma pessoa marcada pela paixão. Verdadeira, autêntica e despida de conveniências. Ela é uma pessoa incapaz de virar a cara para quem sofre. Literalmente. Vocês não estão a entender. Mesmo literalmente. Lembro-me dela esvaziar a carteira a dar dinheiro para pessoas que pediam na rua. Lembro-me dela sentar-se do lado de um sem-abrigo e lhe perguntar a sua história de vida. Lembro-me dela dar abrigo, dormida e comida para pessoas sem recursos que, de alguma forma, cruzavam com ela. Não é a caridade “bonitinha” e bem comportada que fica bem na fotografia. Ela simplesmente não fica indiferente diante de todo aquele que sofre, do que é abandonado, do que tem fome. Ela não julga pela aparência. Ela não tem medo que alguém cheire mal ou que esteja sujo. Ela não vira a cara à pobreza. Antes, presta a ajuda que pode dar preocupando-se com a dignidade de quem ajuda. Ela senta-se e ouve. Ouve. Comove-se. Revolta-se. Por vezes, eu sei, apetece-lhe partir tudo. Apetece-lhe insultar qualquer pessoa que é capaz de passar e de ver e de fingir que não vê e o “estou-me-maribando-desde-que-a-minha-vidinha-siga-o-seu-rumo-cômodo-e-sem-chatices”. Apetece-lhe esbofetear as faces daqueles que estão alienados.

 

Eu vi muitos episódios. Muitas coisas. Muitas horas que ela dedicou a ajudar pessoas anónimas e esquecidas. Vi-a  perder o sono por não poder ajudar mais. O que eu pretendo aqui não é louvar esta minha amiga. Ela não precisa disso, de louvores. Nem de reconhecimento. Ela sabe o que significa para mim e, da mesma maneira, ela também sabe o que eu penso dela. O que eu pretendo é partilhar algumas de suas histórias. Eu prometi-lhe que ia fazer isso para que, mesmo numa dimensão limitada, a escrita fosse uma alerta à indiferença. Dentre as várias doenças que assolam a nossa actualidade esta é uma das mais nocivas: a indiferença. Come-nos a alma e deixa que os outros sejam devorados

 

Falo dela essencialmente para falar sobre o que é realmente importante: o próximo.

 

( tantas outras coisas )

20.08.10, a dona do chá

Desencontro-me do sono. Não foi marcada a hora e a data certa, mas a sua chegada é um pressuposto. Os pensamentos agarram-se às pestanas. Seguram-lhes os movimentos e imobilizam o seu percurso natural. Dançam diante dos olhos. A mente produz e transforma em cenas e sequências o desenrolar dos acontecimentos. É desnecessário um desenho certo daquilo que é visível. O engano, quando existe, é por distracção. O desfecho é conhecido e pouco argumentável. Não é original. Antes, era esperado.

 

Desencontro-me do sono. Ou será que ele se perdeu no caminho? A luz é ténue, a noite é longa e o silêncio é um sinal estranho. Respirações colectivas e metódicas. Sonos selados pela casa. Ouço-os a todos. Ouço estas palavras junto com o ruído distante de um carro anónimo. Os pensamentos que caminham pelos corredores, sobem escadas e atravessam paredes. Atropelam-se. Esbarram-se. Enumeram-se. “Como vai ser?”, questionam sem trégua. Repetem-se: “Como vai ser?”. Soam a eco: “Como vai ser? ser?ser?ser?ser?ser?ser…

 

É possível amordaçar os ouvidos da mente fervilhante? É possível des-sentir a obviedade dos factos? É possível despejar toda a frustração dos gestos?

 

Seria um alívio silenciar o grito mudo do coração. Silenciar as palavras desnecessárias.

 

Desencontro-me do sono.

 

Desencontro-me de tantas outras coisas.