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Chá de Menta

I am half agony, half hope | Jane Austen

Chá de Menta

I am half agony, half hope | Jane Austen

(o coração é um órgão de fogo)

23.02.10, a dona do chá

dia 4 - intermédios

 

outro dia inteiro. outra noite imensa. porta que abre. porta que fecha. novamente. os outros expectantes continuam a me parecer familiares. alguns deles compartilham experiências entre eles. a mulher de branco aparece a porta. cita nomes. resposta afirmativa. vista a bata e me acompanhe. desinfecte as mãos. está ali, ao fundo, consegue vê-lo? sim. estava sentado. peito coberto. pijama de casa. mais camas. mais companheiros. menos instrumentos. o nariz livre. fios. sondas. telas. números. contagens. sinais sonoros. máscara e oxigénio, de vez em quando. a fala vem devagar. o olhar confuso. perdido. palavras e frases sem sentido. diz que viu o que eu sabia que não tinha visto. que ouviu o que eu sabia que não era possível ter ouvido. que dia é hoje? porque o teu irmão não veio? porque estou aqui? vou embora hoje contigo? porque não posso ir contigo? quero me levantar. quero sair. explico. explico mais uma vez. explico novamente. quero abraçá-lo para afastar esta confusão, penso. o que está acontecer, pergunto-me. cai-me o mundo. o que está a acontecer? o que é isto? questino a mulher de branco e ela diz que é normal. normal? normal para mim são palavras, frases e parágrafos com sentido.

intermédio ganhou  um novo significado. delimitou bem nitidamente o início de uma nova etapa.

e, para isto, eu não estava preparada.

 

 

 

(o coração é um órgão de fogo)

23.02.10, a dona do chá

dia 3 - intensivos

 

ver com os próprios olhos que tudo está bem. confirmar as palavras de sucesso. simplesmente ver. por pouco tempo, que seja. não deixam que seja muito tempo. um dia inteiro. uma noite imensa. porta que abre. porta que fecha. rostos que começam a ser familiares. outros expectantes. podemos entrar?. sim, vista a bata e me acompanhe. desinfecte as mãos. está ali, consegue vê-lo? sim. peito desnudo. fios. sondas. telas. números. contagens. sinais sonoros. instrumento no nariz. máscara. oxigénio. voz difícil. não fale. não se esforce. deixe que seja eu a falar.

 

o pior já passou.

(tragédias)

21.02.10, a dona do chá

ver as imagens do temporal que assolou a ilha da Madeira ontem foi assustador.  ver aquelas ruas a serem devastadas pela força da água enlameada e pessoas a perderem tudo em questão de minutos.

 

não controlamos mesmo nada.

 

(aprendi que...)

20.02.10, a dona do chá

... que não devemos temer dizer "eu te amo" quando o sentimos de verdade. é fácil dizê-lo para um namorado ou marido. agora dizê-lo em alto e bom som para familiares e amigos nem sempre acontece. as pessoas intimidam-se e acham piegas. ouço com frequência esta justificação: "ser piegas". contamos sempre com uma certeza falível de que a pessoa vai estar sempre lá. ESQUEÇAM ISSO. no mínuto seguinte a pessoa pode desaparecer. não controlamos nada.

 

eu aprendi que afirmar o meu amor por alguém é um bem necessário e essencial a sobrevivência. 

 

(em concreto 4)

20.02.10, a dona do chá

aprendemos muitas coisas nestes processos dolorosos. estes últimos 6 anos têm sido um processo ininterrupto. foi a perda da minha sogra e, nestes últimos meses, uma possível perda do meu pai. eu estava a me preparar para isso. a operação foi um sucesso e ele sobreviveu. outros factores de saúde ainda cooperam para uma saúde delicada, mas tudo faz parte de um processo que, em muito, ultrapassa o meu entendimento. então, embora não compreenda tudo o que nos tem acontecido, posso dizer que tenho aprendido. confrontamo-nos com medos, limitações e defeitos. não direi que sou uma pessoa melhor, mas sou bem mais consciente.

(o coração é um órgão de fogo)

20.02.10, a dona do chá

- dia 2 – exposto -

 

Ver a porta fechada. O cartaz. O rapaz dos olhos verdes a explicar o procedimento. “Apareça pelas 18h00 que quando o cirurgião terminar a operação ele virá falar com os familiares “. Sim, digo eu. Sim, disse o G. . Então o que fazer o dia inteiro? O que fazer? Como vamos contabilizar esta espera? Como vamos enganá-la? Haverá maneira de acelerar os ponteiros? Podemos ler, podemos ouvir música, podemos comer. Temos algumas opções. Podemos, inclusive conversar. Será que resulta conversar? Será que, entretanto, esta espera não nos irá engolir ? Sinto-me a inchar. Inchar de nervosismo. Parece que o meu próprio peito arde e dilata-se de ansiedade. Tantos meses de espera para chegar a este momento. Este momento exposto. Peito exposto. Coração à vista. Coração que procura continuar com fogo vivo. Arde-me os olhos. Queimo de ansiedade. Palavras ditas, palavras jogadas ao acaso, tentativas de conversa em vão chegam ao mesmo ponto inicial: falta muito? Imagino o cenário dele, culpa de tantas séries médicas que já vi, e aflige-me sabê-lo ali. Mesmo que seja essencial para a sua sobrevivência, aflige-me. Coração exposto diante de todos. Deveria ser proibida a entrada de pessoas estranhas diante do coração dele.  Para eles é só mais uma pessoa. Para nós é todo um universo de sentimentos e história. É todo o amor sem o qual não fazemos sentido. Coração exposto diante de olhos e de instrumentos. A esperança que não nos abandona. A realidade que nos corrói de incertezas.
Falta muito?
“São 17h00. Vamos indo.”, diz o G. Eu concordo agradecida. Prefiro esperar lá. Diante da porta. Meia hora depois a porta abre-se e sai um homem alto, de bata azul, touca verde, olhar sorridente. “Familiares do Sr. F.”, ele questiona. Saltamos das cadeiras. Ele começa a falar, a explicar, sorri mais um pouco. O que ele está dizer? O que é que é que ele disse?? “As artérias estavam muito danificadas, mas conseguimos recuperá-las com sucesso”. Sucesso. Ele disse sucesso?? Continua a explicar e conclui dizendo, tal qual Sean Connery: eu sou Casanova, J. Casanova. Com um sorriso.
Não há medida que quantifique a dimensão do alívio que sentimos. Uma tímida alegria a percorrer a espinha. Um choro de descompressão. Sacamos os telemóveis, toca a ligar a dar a notícia. O coração, este órgão de fogo, não se extinguiu. Podemos nos sentir gratos por esta dádiva. Mais uma etapa foi ultrapassada.
Fechamos a porta. Não me interessa mais o que diz lá.

(o coração é um órgão de fogo)

19.02.10, a dona do chá

dia 2 - antecipação

 

O dia amanheceu antes de anoitecermos. Na confusão dos pensamentos que se entrelaçavam com sonhos evasivos, só pestanejava e dormia alguns minutos e voltava a acordar. A luz que escapava do candeeiro não deixava a noite apoderar-se da minha retina. Mas, por outro lado, não conseguia suportar a escuridão. O tecto revela a sombra, a janela esconde o céu e os cobertores afastam o frio. Embora sentisse um calor insuportável. Não há nada mais angustiante que o tiquetaque mental de uma pessoa angustiada. A espera. Uma mente que conta cada segundo com a demora de uma hora. Levantar foi um alívio. Podemos ir? Podemos ir? Levantamos. Partimos. Como chove! Que chuva incisivamente enfadonha. Viscosa. Já não choveu o suficiente? Não poderia haver uma pausa, por favor? Percorremos estradas e auto-estradas. Seguimos o ritual previsto: tratar dos cartões de visita, seguir o risco do chão, elevador 5, porta, corredor, quarto e cama. Ele estava deitado. Chegamos a tempo. Ele estava deitado e com solidão no olhar. Senti-lhe o medo. Ainda conseguimos fazer-lhe rir. Mas lá estava o medo, à espreita. O medo de quem não sabe bem o que irá acontecer. Um medo estranho. Um medo verdadeiro. Um medo poderoso, que se apodera de todos nós, mas de diferentes maneiras. Chega o rapaz alto de olhos  verdes e diz que chegou a hora. Seria a altura de vestir a bata e a touca. Ele fica meio apressado, meio desnorteado, meio sem saber o que fazer. Como assim chegou a hora? O que significa isso? Talvez ele tenha pensado isso e tropeçava constantemente nesse pensamento. Eu mesma tropeçava e me desviava. Depois de devidamente preparado, ele subiu na maca pelos seus próprios pés. Foi conduzido por nós e pelo rapaz alto de olhos verdes até ao andar de cima. Oitavo andar. Elevador sobe. Saímos. Na porta diz “proibida a entrada de estranhos”. O rapaz diz que nós não podemos entrar. Estranho eu não me sentir estranha. Ele acrescenta que é ali que temos que nos despedir. Abraço-o e digo que tudo vai correr bem, que vou estar o tempo todo lá, que o amo, que Deus vai estar lá com ele. O rapaz o leva.
 Ataca-me uma sensação nova de querer arrancar aquela estúpida porta que diz “proibida a entrada de estranhos”. Como assim ??