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Chá de Menta

I am half agony, half hope | Jane Austen

Chá de Menta

I am half agony, half hope | Jane Austen

( o coração é um órgão de fogo 21 )

27.04.09, a dona do chá

 

Um: - Depende de si… Está disposto a isso? Está disposto a lutar pela sua vida?
Outro: - Eu tenho muito medo.
Um: - Eu entendo, ninguém gosta de pensar que precisa de operar para viver.
 
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Ele segurava a cabeça com quem carregava o coração nas mãos. Os olhos pensavam e pesavam-lhe tanto quanto o seu coração sofria.

( o coração é um órgão de fogo 19 )

13.04.09, a dona do chá

veredicto

 

depois de tantos dias e tantas noites de espera, aguardo impaciente pelo resultado. aguardo que seja um resultado positivo e que tudo volte a ser como antes. acreditava então que a vida podia voltar à normalidade. que foi um engano. o telefone toca e eu, com as mãos molhadas de estarem mergulhadas na loiça, agarro-me a ele. ouço a voz do meu primeiro irmão. e enquanto ele fala resguardo-me dos olhares e deixo que as lágrimas se estendam silenciosas. ele explica-me com linguagem técnica que a coisa não se vai resolver por si só. que será preciso uma intervenção. fico em silêncio. penso "que quinta-feira tão triste". penso "não é possível". penso "ele não vai resistir". e o resto do dia foi uma caminhada pesada. cada prato lavado e cada comida servida eram feitos de olhos lavados. sempre silencioso. porque desde pequena choro assim. copiosamente em silêncio.

 

confronto

 

depois, vê-lo. foi um grande esforço estar com ele, durante toda a tarde, e fazer cara confiante. porque já lhe bastava as próprias dores e o seu medo interior quanto ao futuro. falo do que ainda vamos fazer, das viagens que ele ainda há-de percorrer. no meio da dor, brilha-lhe os olhos pensar nisto. ó meu querido pai aventureiro, o mundo não te chega. e sorrio ainda mais quando quero chorar. abraço-me a ti e não te quero deixar. dou-te a comida, ajeito-te os cabelos de poeta, passo-te um creme nas pernas e penso que até isto é precioso. poder estar assim contigo.

 

anunciação

 

de noite foi também duro, muito duro. todos estavam à volta do telefone, mas ninguém teve coragem de fazer o telefonema. eu tive de dizer ao meu segundo irmão, do outro lado do oceano. disse-lhe. seguiu-se o silêncio. a incredulidade. eu sei que ele pensava como eu, que tudo havia de correr pelo melhor. que tudo poderia voltar à normalidade. "é, meu irmão, não sei mais que te diga". silêncio. ele responde-me algo com aflição na voz. sinto-lhe no timbre. sei que ele, tal como eu, não terá uma noite inteira.

( o coração é um órgão de fogo 18 )

13.04.09, a dona do chá

- o homem imobilizado e a mulher do olhar cansado -

o homem, imobilizado na cama, só podia ser alimentado por sonda. já não podia ser movimentar. a sua mente já não comandava os seus movimentos. já não falava. apenas o som aguerrido da insistente respiração. um olhar perdido de quem sabe o que está a acontecer e de quem sabe que não há mais nada a fazer. a mulher, cabelos brancos, amarrados no alto da cabeça com um travessão, unhas enegrecidas de quem trabalhou a vida inteira na terra, também sabe que não há mais nada a fazer. apenas esperar. ela não entende muito bem o que a enfermeira lhe diz. com os olhos sempre vermelhos, de quem passa as noites a chorar, olha confusa e resignada. a enfermeira fala, fala, fala. e ela encolhe os ombros. "que hei-de fazer?", deve estar ela a pensar. a enfermeira sai e ela aproxima-se da cama, acaricia o rosto do homem, diz-lhe "o que foi?", "então?", "não te aflijas". afaga-lhe mais uma vez o rosto. pega num lenço, emudece-o e passa-lhe nos lábios ressecados pelo esforço de respirar. ele acalma-se. ela volta a sentar-se na cadeira. segura o próprio rosto com as mãos. até ouvir-lhe a respirar com dificuldade novamente. volta a levantar-se. e tudo se repete.

 

a verdadeira prova de amor se vê numa cama de hospital, quando o amor resiste a prova do amor e da doença. o resto são balelas.

( o coração é um órgão de fogo 17 )

06.04.09, a dona do chá

posso sustentar o facto de que o teu olhar tem mil lembranças. cada uma construída de passos e decisões. posso afirmar que cada passo foi dado com a certeza de que era o melhor a ser feito. de tal forma, que posso também afirmar que nem sempre isso foi verdade. nem sempre foi o melhor. houve alturas em que até foi o pior que poderias ter feito. mas não somos feitos disto, de imperfeições e más decisões? que importa isto agora? interessa é o que podes fazer daqui para a frente. não existe idade definida para deixar de lutar. o corpo envelhece, mas os sentimentos não precisam de acompanhar este processo. a alma permanece. ainda há muita estrada para rodar. e tu sabes disto.

(...)

06.04.09, a dona do chá

«

(...)

If the sky that we look upon should tumble and fall
And the mountains should crumble to the sea
I won't cry, I won't cry, no I won't shed a tear
Just as long as you stand
, stand by me

(...)

»

 

 

Ben E. King | Stand By Me

( o coração é um órgão de fogo 16 )

06.04.09, a dona do chá

ele estava pálido e sonolento. conversava como que para que eu não ficasse triste. ele sabe que eu gosto de vê-lo falador. a sonhar com os olhos e a sorrir de alma aberta. por vezes isto acontece, ele esquece momentaneamente as suas amarguras e voa nas próprias palavras. até a voz dele sorri. mas ele estava sonolento. não encontrava posição na cama, doía-lhe as costas e revirava-se na cama. esta não lhe servia: é muito mole, muito fria e não tem o cheiro de casa.

ele sorri, o que me tranquiliza. o que é estranho, porque um sorriso não é garantia de nada.

 

 

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o teu [coração] tem "preguiça" - mas tu tens garra para voar...

( o coração é um orgão de fogo 15 )

03.04.09, a dona do chá

é alí que se vê o sofrimento humano, como somos frágeis e como dependemos de terceiros. muitos deles, desconhecidos. dependemos diariamente de desconhecidos e não nos damos conta disso. procuro por ajuda para aliviar a dor dele. custa-me tanto vê-lo sofrer. ele não é o único. muitos sofrem e solitariamente. muitos alí não tem quem lhes segure a mão e lhes diga que tudo há-de correr bem. algumas daquelas pessoas não tem quem lhes diga que são amadas. algumas daquelas pessoas só tem por companhia o tecto branco e o som de vozes que se confundem e se distorcem. vozes que soam bem de longe, pelos corredores, em fugida.
mas o sofrimento e a decadência que a falta de saúde, por vezes, causa faz com que surja aquela solidão corrosiva. eu vejo nos olhos que passam por mim. olhos que se cansaram de contar as horas. olhos que só distinguem o dia da noite. olhos que esperam pela sua própria hora. uma espera pelo alívio ansiado. olhos que se arrastam com suas botijas de soro. porque dói tanto? é a minha alma ou é o meu corpo que não me deixa descansar?
surge uma comoção, uma identificação com quem sofre, um desejo de fazer algo para ajudar alguém. vejo tudo isto e não sinto constrangimento diante da dor, da doença e da solidão. sinto apenas uma enorme vontade de fazer algo. começo a falar. começo a dizer que há esperança. eu posso não mudar a vida de ninguém, mas enquanto te vejo pai, posso também ajudar mais alguém dar uma palavra de consolo sincero, oferecer ajuda. não é verdade, meu querido pai, que não devemos passar pelas pessoas como se fossem páginas pisadas?
eu rejeito a indiferença. não vivo de ilusões transitórias e de corações desenhados no papel. não quero viver de discursos. de dizer o que fica bem, do que os outros querem ouvir. o que tenho a fazer, faço. no fundo, acho que aprendi a ser assim contigo.

 

( o coração é um orgão de fogo 13 )

02.04.09, a dona do chá

acontece-me de andar apertada de medo. completamente dominada pela sensação de perda, mesmo que esta ainda não tenha acontecido. vivo assombrada pelo medo de perdê-lo e por ser impotente para mudar o seu comportamento de risco. eu sei que para haver uma mudança, ela tem de começar na própria pessoa. não depende só de mim. depende dele.
passo a mão pelos seus cabelos brancos, em forma de carinho, não me canso de olhar para ele. relembro a infância, de quando era ele que me deixava fazer totós e penteados, sentada em cima dos seus ombros. isto já aconteceu há tanto tempo, num local onde cheirava a terra molhada e de árvores caiadas. lembras-te, meu pai? numa terra onde as noites aconteciam tarde e a eternidade durava realmente para sempre. contavas-me histórias das tuas andanças por outras terras e outros mares. e eu pensava: "meu pai é sensacional!". ainda penso assim. és sensacional. quem olha para ti hoje não te vê como tu és, só te vê os cabelos brancos, a debilidade da idade da saúde. mas eu, eu te vejo a ti, um homem com defeitos e qualidades. um homem que cometeu erros, mas que também conquistou várias coisas. um homem com uma enorme capacidade de sonhar e de empreender. nos teus olhos aparece, por vezes, uma sombra. lamentas os erros que cometeste. lamentas não ter feito melhor. e eu digo-te: "ó meu paizinho, e quem não os comete?". ainda tens tanto para viver. ainda tens tanto para sonhar. tens de reencontrar este lutador que existe dentro de ti e lutar sem cessar. lutar por ti. lutar com coração. pelo teu coração. e, porque não dizer, pelo meu coração também; porque não serei capaz de suportar a tua ausência.
olho para os teus cabelos de poeta desordenados e tenho orgulho na brancura deles. tenho respeito pela tua vivência e pela tua experiência de vida. ainda tenho tanto a aprender. preciso de ti, preciso dos teus conselhos. preciso de ouvir mais histórias, preciso de gravá-las, de fazê-las perdurar no tempo para que as possa contar aos meus futuros filhos. preciso que tu também um dia as contes para eles.