(o coração é um órgão de fogo)
20.02.10, a dona do chá
- dia 2 – exposto -
Ver a porta fechada. O cartaz. O rapaz dos olhos verdes a explicar o procedimento. “Apareça pelas 18h00 que quando o cirurgião terminar a operação ele virá falar com os familiares “. Sim, digo eu. Sim, disse o G. . Então o que fazer o dia inteiro? O que fazer? Como vamos contabilizar esta espera? Como vamos enganá-la? Haverá maneira de acelerar os ponteiros? Podemos ler, podemos ouvir música, podemos comer. Temos algumas opções. Podemos, inclusive conversar. Será que resulta conversar? Será que, entretanto, esta espera não nos irá engolir ? Sinto-me a inchar. Inchar de nervosismo. Parece que o meu próprio peito arde e dilata-se de ansiedade. Tantos meses de espera para chegar a este momento. Este momento exposto. Peito exposto. Coração à vista. Coração que procura continuar com fogo vivo. Arde-me os olhos. Queimo de ansiedade. Palavras ditas, palavras jogadas ao acaso, tentativas de conversa em vão chegam ao mesmo ponto inicial: falta muito? Imagino o cenário dele, culpa de tantas séries médicas que já vi, e aflige-me sabê-lo ali. Mesmo que seja essencial para a sua sobrevivência, aflige-me. Coração exposto diante de todos. Deveria ser proibida a entrada de pessoas estranhas diante do coração dele. Para eles é só mais uma pessoa. Para nós é todo um universo de sentimentos e história. É todo o amor sem o qual não fazemos sentido. Coração exposto diante de olhos e de instrumentos. A esperança que não nos abandona. A realidade que nos corrói de incertezas.
Falta muito?
“São 17h00. Vamos indo.”, diz o G. Eu concordo agradecida. Prefiro esperar lá. Diante da porta. Meia hora depois a porta abre-se e sai um homem alto, de bata azul, touca verde, olhar sorridente. “Familiares do Sr. F.”, ele questiona. Saltamos das cadeiras. Ele começa a falar, a explicar, sorri mais um pouco. O que ele está dizer? O que é que é que ele disse?? “As artérias estavam muito danificadas, mas conseguimos recuperá-las com sucesso”. Sucesso. Ele disse sucesso?? Continua a explicar e conclui dizendo, tal qual Sean Connery: eu sou Casanova, J. Casanova. Com um sorriso.
Não há medida que quantifique a dimensão do alívio que sentimos. Uma tímida alegria a percorrer a espinha. Um choro de descompressão. Sacamos os telemóveis, toca a ligar a dar a notícia. O coração, este órgão de fogo, não se extinguiu. Podemos nos sentir gratos por esta dádiva. Mais uma etapa foi ultrapassada.
Fechamos a porta. Não me interessa mais o que diz lá.